SOU
TRANSPLANTADA. PONTO. Isso
não me define, mas é uma condição importante da minha existência. Desde 17 de
julho de 2008, uma nova rotina acompanha minha vida. Engolir pelo menos três
tipos de medicamentos duas vezes ao dia, tirar sangue e ir ao médico todos os
dias, depois dia sim dia não, depois dois dias não e um sim, até chegar a três
meses não e um dia sim.
A
nova rotina também inclui buscar medicamentos em uma farmácia de alto custo uma
vez por mês. É basicamente sobre isso que este texto fala: ser dependente de
algo que é seu direito. Porém, um direito que está sob ataque do novo governo.
Fui
diagnosticada com doença renal terminal aos 19 anos, em 2005. Morava em São
Carlos, interior de São Paulo, onde fazia faculdade. Estudava de manhã e à
tarde e no final de semana trabalhava como garçonete num restaurante. Me sentia
extremamente cansada e atribuía isso à rotina cheia de atividades.
Percebi
que algo ia mal nas férias no final de 2004 quando fui para a casa da minha mãe
em Minas Gerais e a assustei com minha magreza e palidez. Acabei indo a um
ginecologista para exames de rotina. Ele elencou uma série de sintomas, aos
quais respondi sim várias vezes, e pediu um hemograma simples. Pronto. Estava
fechado o diagnóstico, uma anemia.
Litros
de feijão, quilos de beterraba e um suplemento alimentar depois, voltei a São
Carlos. Porém, o cansaço e os sintomas como um enjoo constante não cediam.
Resolvi por conta própria ver o que estava acontecendo e marquei um médico.
Contei os sintomas, o diagnóstico e tratamento anterior e saí com uma uma lista
um pouco maior de exames de sangue para fazer.
Bem
no meio da semana o laboratório me chamou para refazê-los. Em uma sexta-feira,
antes de ir trabalhar, peguei os resultados. Bomba! Os marcadores ligados à
função renal, ureia e creatinina estavam muito alterados. Sabia um pouco sobre
eles, pois meu pai foi portador de doença renal crônica e também foi
transplantado.
Durante
todo o tratamento, eu tive certeza de que o que me mantinha viva eram os
impostos pagos por toda a sociedade.
Com
o resultado em mãos, corri para a clínica de diálise mais próxima e pedi um
encaixe. Sinceramente não sei nem dizer se utilizei meu convênio médico ou não,
estava tão nervosa que só me lembro do dó dos outros pacientes que
permitiram que eu fosse atendida antes. A cara da médica foi a pior possível e,
sem me dar grandes explicações, falou para eu ir naquele dia para São Paulo, de
preferência para um hospital de referência. Meu plano de saúde era médio. Não
havia hospitais de referência que o aceitassem. Foi a primeira vez na vida que
recorri ao SUS, tirando as vacinas e os serviços invisíveis que o sistema
presta a toda a população.
Depois
disso, foram três anos e meio de diálise. Seis meses fazendo diálise peritoneal
manual, pois havia fila de espera pela cicladora, uma máquina capaz de
trabalhar enquanto eu dormiria, o que melhoraria a minha qualidade de vida.
Depois, foram três anos utilizando essa máquina e todos os insumos fornecidos
pelo SUS. Consultas e exames pelo SUS também. Consegui me locomover por São
Paulo gratuitamente graças ao bilhete único para deficientes que me foi
fornecido pela prefeitura.
Tive
um atendimento excelente, com profissionais de medicina e enfermagem nos quais
eu confiava. Tive acesso a uma assistente social que fez todos os processos
necessários para que, além dos insumos para a diálise, eu tivesse acesso à
eritropoetina humana, ao sulfato ferroso, enfim, a todos os medicamentos e
exames que eu precisasse, além dos trâmites legais para o benefício do passe
livre que consegui na prefeitura.
Durante
todo o tratamento, tive certeza de que o que me mantinha viva eram os impostos
pagos por toda a sociedade. Não senti que eu devia nada a ninguém, mas sim à
ideia e à construção de um sistema de saúde público e universal.
O
SUS nasceu como ideia em 1986, norteou área de saúde na criação da Constituição
de 1988 e foi implementado em 1990. Mesmo com seus limites, amplamente
divulgados, foi o sistema em que encontrei um tratamento caríssimo e de
excelente qualidade que eu jamais poderia pagar. Aliás, pouquíssimos
brasileiros e brasileiras poderiam.
Em
2017, o SUS respondia pelo financiamento de 90% das terapias renais
substitutivas, que compreendem diálises, transplantes e a manutenção desses
procedimentos.
Existe
um grande aumento da doença renal crônica em todo mundo. Diabetes, hipertensão
arterial e outras doenças que poderiam ser perfeitamente controláveis caso as
pessoas tivessem a atenção básica adequada. Segundo um artigo de 2017, mais de 5% das despesas do SUS
com atenção à saúde de média e alta complexidade são dedicados somente à
insuficiência renal crônica.
Meu
transplante, cuja doadora foi minha madrinha de batismo, Andréa Reusing, foi um
sucesso. Mesmo assim, ainda hoje preciso tomar uma dosagem maior de remédios do
que os transplantados que conheço. Geralmente é o caso de quem tem um doador
não relacionado, ou seja, que não é parente até 3º grau.
Durante
todo o percurso que fiz como paciente, e haja paciência, eu tive certeza de
dois apoios: minha mãe e o SUS. É brega dizer, mas me sinto orgulhosa de viver
em um país cuja Constituição é baseada na solidariedade e na universalidade
quando se tratam de direitos básicos como educação e saúde. Obviamente a
realidade concreta é muito diferente; porém, os princípios estavam dados. Mãe
dispensa explicações.
Imagem
da lotação da farmácia de alto custo da Avenida Dr. Altino Arantes, em São
Paulo, em maio de 2015. A espera chegava facilmente a 3h. Pessoas
transplantadas com baixíssima imunidade dividiam o espaço com pessoas com doenças
infecciosas.Fotos:
“Estavam”,
porque existe um plano de desmonte do SUS. Com a PEC do Teto de Gastos aprovada
em dezembro de 2016, já era previsível que o investimento em saúde não daria
conta dos gastos do setor, principalmente porque eles aumentam. Isso é
previsível e deve ser considerado no orçamento da pasta.
Em
2017, o deputado do democratas do Mato Grosso do Sul Luiz Henrique
Mandetta, o atual ministro da Saúde, e Silas Freire, do Podemos do Piauí,
convocaram uma audiência pública para debater o preço da hemodiálise e a
reutilização de equipamentos que são feitos para o descarte após o uso. As duas
medidas são apenas exemplos dos planos de sucateamento do SUS e a
insegurança a que nós, usuários do sistema, estamos expostos.
Atualmente,
estou com medo de não ter à disposição os medicamentos de alto custo que tomo
para evitar rejeição do órgão transplantado, os imunossupressores. O governo
Bolsonaro descredenciou seis laboratórios que fornecem
medicamentos para o SUS, dentre eles dois que produzem medicamentos dos quais
dependo.
Foram
suspensos os projetos de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) de
medicamentos. São laboratórios públicos, que produzem os remédios e os vendem
com desconto ao SUS, que os repassa gratuitamente para pacientes com doenças
crônicas como diabetes, câncer e transplantados.
Foto
do dia 14 de outubro de 2016, quando, pela primeira vez, o medicamento Tacrolimus
1 mg não estava disponível e nem havia previsão de entrega. Todos estavam
desesperados, pois já havia ocorrido atrasos, mas jamais sem data prevista de
entrega. A imprensa repercutiu o caso na ocasião.
Os
laboratórios descredenciados são: Biomanguinhos, Butantã, Bahiafarma, Tecpar,
Farmanguinhos e Furp. O laboratório da Furp produz dois dos medicamentos de
alto custo dos quais preciso, o tacrolimus e azatioprina. São exatamente esses
os dois medicamentos alto custo que utilizo, os demais compro normalmente em
farmácias privadas.
Esses
medicamentos não são vendidos em farmácias comuns e, quando são, tem um
altíssimo preço. Calculo que, em média, gastaria mais de R$ 1 mil por mês para
comprá-los, caso estivessem disponíveis no Brasil. No exterior, com os preços
em dólares ou euros, seria ainda mais caro, e nem tenho ideia de como proceder
a importação.
Existe
um sentimento intrínseco a quem tem uma doença crônica grave: a falta de
capacidade de planejar o futuro no longo prazo. Tivemos nossas vidas
interrompidas ao menos uma vez. Deixamos em suspenso nossos sonhos, trabalhos,
estudos e outras áreas importantes.
A
necropolítica levada a cabo atualmente pelo governo Bolsonaro materializa esse
medo quando nos nega o direito à saúde pública e coloca um preço na nossa
existência.
O
fiscalismo vai sufocar o SUS pouco a pouco, e quem depende dele também.
19 de Julho de 2019, 0h02
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